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    Marcelo Zero

    É sociólogo, especialista em Relações Internacionais e assessor da liderança do PT no Senado

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    A estratégia da Ucrânia para o Sul Global

    "O Brasil e o Sul Global não vão importar guerras e conflitos. Desejam cooperar pacificamente com todos", escreve Marcelo Zero

    Volodymyr Zelensky (à esq.) e Luiz Inácio Lula da Silva (Foto: REUTERS/Valentyn Ogirenko | Ricardo Stuckert)

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    A aproximação ao chamado Sul Global e ao Brasil, em particular, nunca foi uma diretriz importante na política externa da Ucrânia, desde 2014.

    Com efeito, Kiev, após o golpe de 2014, sempre teve como grande prioridade suas relações com os EUA e a Europa. Apostava, e ainda aposta, na sua entrada na OTAN e na União Europeia como elemento central da sua inserção no mundo.

    Desde então, o Sul Global e o Brasil estiveram em um muito distante segundo plano.

    Nem sempre foi assim.

    Em governos anteriores, o Brasil tinha alguma importância para a Ucrânia. Tanto é assim, que ambos os países decidiram elevar o relacionamento bilateral ao nível de Parceria Estratégica, durante a visita de Estado do então Presidente Lula a Kiev, em 2/12/2009.

    Essa visita foi retribuída dois anos depois, quando o então Presidente da Ucrânia, Viktor Yanukovych, aquele que foi deposto no golpe de 2014, esteve no Brasil, em 24 e 25/10/2011, acompanhado por uma comitiva volumosa de autoridades e empresários.

    Um exemplo dessa parceria ora extinta foi a cooperação bilateral espacial Brasil/Ucrânia.

    A cooperação espacial entre Brasil e Ucrânia foi instituída pelo Tratado sobre Cooperação de Longo Prazo na Utilização do Veículo de Lançamentos Cyclone-4, firmado em 2003.

    O objetivo principal do Tratado era definir as condições para o desenvolvimento do Sítio de Lançamento do Cyclone-4 (foguete ucraniano) no Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), no Maranhão, bem como para a prestação de serviços de lançamentos para os programas espaciais das Partes, assim como para clientes comerciais.

    O Tratado de 2003 estabeleceu obrigações para o Estado brasileiro, para o Estado ucraniano e para a Alcântara Cyclone Space (ACS), empresa binacional estabelecida em 2006 para dar cumprimento aos objetivos do acordo.

    Ao Brasil, por meio da Agência Espacial Brasileira (AEB), competia desenvolver a infraestrutura física do CLA (excetuada a torre de lançamentos e instalações diretamente relacionadas) e de seus arredores. À Ucrânia, cabia desenvolver o foguete propriamente dito, o Veículo Lançador Cyclone-4, basicamente um aperfeiçoamento de seu modelo Cyclone-3. Já à ACS, caberia construir o sítio de lançamento do Cyclone-4 (a torre e as instalações diretamente relacionadas aos lançamentos, localizadas no interior do CLA).

    Dessa forma, Brasil e Ucrânia, utilizando-se da excelente localização da Base de Alcântara, que permite muita economia nos lançamentos, e a consistência dos foguetes ucranianos, poderiam se constituir em importantes players, no mercado mundial de lançamentos de satélites.

    Ademais, previa-se que a Ucrânia poderia cooperar com o Brasil, no desenvolvimento do veículo lançador brasileiro, destinado a fins unicamente pacíficos.

    Contudo, o Tratado em questão nunca funcionou como planejado, por diversos motivos. O Estado ucraniano, em particular, não apresentou as devidas contrapartidas aos investimentos brasileiros feitos no projeto, que ascenderam a R$ 483 milhões, desde 2007 até a denúncia do Tratado.

    Houve, é claro, influência negativa da grave crise econômica ucraniana, que se arrasta até hoje. Saliente-se que, em 2014, a guerra civil interna agravou muito a situação financeira daquele país.

    Mas houve também o fator geopolítico.

    Os EUA sempre se opuseram ao desenvolvimento do veículo lançador brasileiro.

    Essa oposição à cooperação entre Ucrânia e Brasil está registrada em telegrama que o Departamento de Estado enviou à sua embaixada em Brasília, em janeiro de 2009. Conforme esse telegrama, os EUA “não apoiam o programa nativo dos veículos de lançamento espacial do Brasil.....” “Queremos lembrar às autoridades ucranianas que os EUA não se opõem ao estabelecimento de uma plataforma de lançamentos em Alcântara, contanto que tal atividade não resulte na transferência de tecnologias de foguetes ao Brasil".

    Os Estados Unidos também se opuseram a lançamentos de satélites norte-americanos (ou fabricados por outros países, mas que contenham componentes estadunidenses) a partir do Centro de Lançamento de Alcântara, por falta de um Acordo de Salvaguardas Tecnológicas e "devido à nossa política, de longa data, de não encorajar o programa de foguetes espaciais do Brasil".

    Desse modo, os EUA viam a cooperação entre Ucrânia e Brasil como uma ameaça à sua política de impedir que o nosso país desenvolvesse veículos lançadores próprios, mesmo sendo o Brasil um país pacífico e membro do MTCR (tratado do regime de controle de mísseis). Daí a sua pressão sobre a Ucrânia para que a cooperação bilateral com o Brasil não fosse à frente.

    Obviamente, o deslocamento geopolítico da Ucrânia para os EUA e a União Europeia, após os eventos da praça Maiden, facilitou tal pressão.

    A partir de 2014, ficou claro que o novo governo ucraniano não tinha mais nenhum interesse nessa cooperação com o Brasil.

    Assim, o Tratado entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Ucrânia sobre Cooperação de Longo Prazo na Utilização do Veículo de Lançamento Cyclone-4 no Centro de Lançamento de Alcântara foi denunciado, pelo Brasil, mediante o Decreto nº 8.494, de 24 de julho de 2015.

    Agora, no entanto, no contexto do conflito com a Rússia, o governo de Zelensky, de forma bastante oportunista, tenta se aproximar de regiões e países que antes desprezava.

    Assim, a Ucrânia reconheceu a necessidade de procurar apoio, reforçar as alianças existentes e criar parcerias com países do Sul Global. No final de 2022, o Presidente Volodymyr Zelensky – pela primeira vez – designou o Sul Global como uma prioridade nos esforços diplomáticos da Ucrânia.

    Essa ofensiva diplomática ucraniana tem alguns objetivos.

    Em primeiro lugar, tentar reforçar as sanções as sanções ocidentais sem precedentes impostas aos russos. A Rússia diversificou com sucesso as suas parcerias econômicas no Sul Global, estabelecendo novas cadeias e reforçando outras cadeias de abastecimento existentes fora da Europa. A ideia é impedir ou obstaculizar essas relações econômicas.

    Nesse âmbito econômico, Zelensky intenta se utilizar do aumento dos preços de alimentos e de fertilizantes no mercado mundial, um tema sensível em muitos países em desenvolvimento, para atrair aliados em nações importadoras de alimentos.

    Em segundo lugar, difundir a ideia de que a Rússia é um “agressor” com tendências “neoimperialistas” e, com isso, despertar a simpatia entre as nações do Sul Global, particularmente aquelas que partilham um profundo trauma colonial.

    Em terceiro lugar, sabotar os esforços de um número crescente de países, incluindo, entre outros, a China, a África do Sul, o Brasil e a Índia, em prol de um processo de paz viável, que contemple os interesses de ambos os lados do conflito e que acabe com uma guerra que tem amplas repercussões globais negativas.

    Os interesses de Kiev e do Ocidente estão alinhados na promoção da “fórmula de paz de Zelensky”, que ignora totalmente a Rússia e seus interesses, impondo uma capitulação incondicional, obviamente impraticável.

    Essa ofensiva diplomática ucraniana, porém, deverá fracassar.

    O Brasil, evidentemente, deseja ter boas relações com a Ucrânia, como já teve em passado recente, nos primeiros governos Lula. Mas essas relações não se podem se dar com o sacrifício da política externa independente do Brasil, dos interesses brasileiros, da busca de uma paz viável e duradoura e da construção de uma ordem mundial multipolar e simétrica.

    O Brasil e o Sul Global não vão importar guerras e conflitos. Desejam cooperar pacificamente com todos.

    Como diz o ditado espanhol: cría cuervos y te sacarán los ojos.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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